O processo disciplinar

Podemos ajudar?

Quando vou a um café e peço um gelado, quase que me dá uma imediata dor de cabeça só de pensar na quantidade de sabores que me vão mostrar. Straciatella, menta, lima (isso não é para as caipirinhas?), avelã, coco. E eu, sem saber ao certo qual o sabor que devo escolher. Acabo por jogar pelo seguro: “pode ser um gelado de baunilha”, digo aparentemente convicta ao empregado.

Nesses momentos o meu coração relaxa. Erradamente relaxa. Pois no segundo a seguir já me estão a fazer pensar novamente numa nova questão: “no copo ou em cone?”. Acabo por escolher em cone. Eu sei, eu sei. Devia escolher o copo para que o gelado não me derretesse nas mãos. Mas há coisas na vida que embora saibamos que são as mais corretas, nem sempre conseguimos executar.

Porque é que estou a falar disto?

Porque se não tomamos a atitude certa perante o processo disciplinar que nos instauraram, se não procuramos responder às acusações que nos fizeram, acabamos por deixar derreter “a bola de gelado”, o nosso emprego, que tanto tempo demorámos a conseguir e que, de repente, vemos fugir por entre as mãos, porque o nosso empregador decidiu vingar-se e abrir contra nós um processo disciplinar.

O poder disciplinar laboral constitui um instituto-chave do Direito do Trabalho. A aplicação de sanções disciplinares por parte do empregador, não é feita de forma automática, obedecendo, antes, a um processo que é regulado pelo Código do Trabalho. Neste sentido, o processo disciplinar ou procedimento disciplinar é o conjunto de atos desencadeados dirigidos a apurar e investigar os factos de que o trabalhador é acusado, nomeadamente se a prática de uma certa conduta praticada por este se configura como ilícita e/ou prejudicial para o normal funcionamento da empresa e das relações entre colaborados e entre colaboradores e os seus superiores hierárquicos.

No contexto do poder disciplinar do empregador, surgem alguns princípios com especial relevo: o princípio non bis in idem – significa que não pode ser aplicada mais do que uma sanção ao trabalhador e o princípio do contraditório, ou seja, o trabalhador tem direito à audiência prévia. Por sua vez, o princípio da celeridade comporta várias dimensões. Vejamos:

  • o direito de exercer o poder disciplinar prescreve 1 ano após a prática da infração;
  • o procedimento disciplinar deve iniciar-se nos 60 dias subsequentes àquele em que o empregador teve conhecimento da infração e,
  • a sua aplicação deve ter lugar nos 3 meses subsequentes à decisão.

Nesse âmbito e, de modo a respeitar os princípios já elencados, o processo disciplinar compreende três fases principais:

  1. O inquérito normativo,
  2. A nota de culpa e,
  3. A decisão final.

Vejamos o que significa cada uma destas fases.

O inquérito prévio é o procedimento através do qual o empregador apura os factos antes de enviar a nota de culpa, de modo a decidir quais é que justificam a instauração do processo disciplinar. No processo de inquérito prévio o empregador dispõe de 30 dias entre a suspeita de factos irregulares e o início do inquérito para o exercício da ação disciplinar e 30 dias após a conclusão do inquérito para a notificação da nota de culpa. Se não existir inquérito prévio, o empregador dispõe de 60 dias após o conhecimento dos factos.

De seguida, surge a fase da acusação: o empregador desencadeia o procedimento disciplinar, entregando ao trabalhador a “nota de culpa”. A nota de culpa deverá ser entregue ao trabalhador dentro dos prazos previstos, devendo conter a descrição tão concreta quanto possível da infração disciplinar – o comportamento culposo do trabalhador que se traduz na violação dos deveres laborais e/ou dos interesses da empresa. Se for o caso, o empregador deverá comunicar ao trabalhador a intenção de despedimento na nota de culpa.

Posteriormente surge a fase da defesa, isto é, o trabalhador dispõe de 10 dias úteis para consultar o processo e responder à nota de culpa, podendo juntar documentos e requerer as diligências probatórias que se mostrem pertinentes. A defesa é um direito do trabalhador, e não um ónus jurídico, pelo que o trabalhador pode reservar a sua defesa para as instâncias judiciais (aproveitando a vantagem do facto surpresa).

Sem demora, nasce a fase da instrução. Aqui o empregador sempre deverá proceder às diligências probatórias requeridas pelo trabalhador na resposta à nota de culpa, a menos que as considere dilatórias ou impertinentes, devendo, neste caso, alegá-lo fundamentadamente por escrito. Esta fase é um corolário das garantias constitucionais de defesa, nomeadamente da Constituição da Républica Portuguesa. Após o suprarreferido, a comissão de trabalhadores poderá, no prazo de 5 dias a contar desde a entrega da cópia do processo pelo empregador, fazer juntar o seu parecer ao mencionado processo.

       Por fim, na fase de decisão, o empregador dispõe de 30 dias para tomar a referida decisão. Esta decisão deve ser fundamentada e constar de documento escrito, não desrespeitando o objeto do procedimento disciplinar, fixado na nota de culpa.

O Código do Trabalho prevê, no exercício do poder disciplinar, as sanções que podem ser aplicadas pelo empregador, entre elas:

  • a repreensão,
  • a repreensão registada,
  • a sanção pecuniária,
  • a perda de dias de férias,
  • a suspensão do trabalho com perda de retribuição e de antiguidade e,
  • o despedimento sem indemnização ou compensação (despedimento com justa causa).

Podem ser ainda previstas outras sanções disciplinares através de regulamentação coletiva de trabalho. No entanto, estas sanções não podem prejudicar os direitos do trabalhador. No âmbito do exercício do poder disciplinar, o empregador pode, ainda, recorrer à suspensão preventiva do trabalhador, sempre que a sua presença na empresa se mostre impeditiva da prossecução do procedimento disciplinar ou se mostre inconveniente ao regular funcionamento.

Para além disso, a aplicação destas sanções disciplinares deve respeitar alguns dos seguintes limites:

  • as sanções pecuniárias aplicadas a trabalhador por infrações praticadas no mesmo dia não podem exceder um terço da retribuição diária e, em cada ano civil, a retribuição correspondente a 30 dias;
  • a perda de dias de férias não pode pôr em causa o gozo de mais de 20 dias úteis e a suspensão do trabalho não pode exceder 30 dias por cada infração e, em cada ano civil, o total de 90 dias.

É importante também não esquecer que a sanção disciplinar deve ser proporcional à gravidade da infração e à culpabilidade do infrator, não podendo aplicar-se mais de uma pela mesma infração, devendo ter lugar nos 3 meses subsequentes à decisão, sob pena de caducidade.

Por outro lado, são consideradas sanções abusivas, as sanções originadas por reclamação legítima do trabalhador contra as condições de trabalho, recusa do trabalhador a cumprir ordem a que não deva obediência, exercício ou candidatura do trabalhador ao exercício de funções em estrutura de representação coletiva dos trabalhadores e o facto do trabalhador alegar ser vítima de assédio ou ser testemunha em processo judicial e/ou contraordenacional de assédio.

É essencial também salvaguardar que o exercício de poder disciplinar está sujeito a controlo jurisdicional a posterior, pelo que, se o trabalhador entender ter sido alvo de sanção injusta ou incorreta poderá impugnar judicialmente a referida sanção disciplinar – é o direito de ação judicial. O tribunal poderá confirmar ou anular a sanção, mas não poderá substituir-se ao empregador e aplicar ao trabalhador uma outra medida punitiva que entenda mais adequada.

Quanto ao prazo para a impugnação judicial, o Código de Trabalho não oferece uma resposta clara, ficando a questão de que se deverá fazer valer o prazo de 1 ano para que o procedimento disciplinar não prescreva, acabando por obrigar o trabalhador a optar entre abdicar do seu direito de impugnar uma sanção que considera ilícita ou abrir um litígio judicial com alguém que ainda é seu empregador.

Depois de acompanharmos inúmeros casos de despedimentos, não podemos deixar de realçar que a nota de culpa é uma peça elementar no procedimento disciplinar. Por isso, assim que recebe a nota de culpa, o trabalhador deve consultar o processo, de modo a instruir devidamente a resposta à nota de culpa. É nesta resposta que deve anexar documentos, pedir provas e requerer que sejam ouvidas as suas testemunhas. Não devemos esperar que o processo siga para Tribunal para explicarmos a nossa versão dos factos! O desfecho do processo em Tribunal depende muito daquilo que foi escrito na nota de culpa, do que foi respondido na resposta à nota de culpa e do que foi considerado provado na decisão proferida pela entidade empregadora.

Bem sabemos que nem sempre é fácil encontrarmos testemunhas que tenham a coragem de nos defender contra a empresa onde trabalham. No entanto, são essas testemunhas que farão a diferença no processo laboral, na eventualidade dele seguir para Tribunal.

De facto, vale a pena perder algum tempo a fundamentar a resposta à nota de culpa, ponto por ponto, quantos aos factos e às questões de direito. É esta a receita que nos permite defender os nossos direitos laborais e continuar a saborear a vida que tanto desejámos.

Despeço-me com estima, até breve

Margarida Ferreira Pinto

Para saber mais sobre Direito Laboral, sugerimos que nos contacte ou consulte estas páginas:

Direito Laboral

Código do Trabalho

Código de Processo do Trabalho

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